Os negros sempre estiveram presentes na minha vida e da minha família e este texto é uma homenagem a eles, que sempre tiveram o nosso respeito, porque a igualdade é um princípio cidadão, cristão e todos têm os mesmos direitos e deveres dentro da sociedade. Discriminar minorias, além de crime, é falta de humanidade.
Quando eu era pequena, costumava ir com minha mãe ao Vespeiro, que ficava no início da Rua Sete de Setembro, onde hoje há um posto de gasolina. Era um local habitado apenas por negros; nós morávamos ali perto e íamos visitar Dona Noêmia, nossa conhecida. Eu me lembro que ela tinha um grande pilão, no qual fazia uma simpatia para bebês que custavam a andar. Se estes teimavam em ficar engatinhando, quando outros da mesma idade já andavam, as mães os levavam até ela para fazer a tal simpatia. Ela colocava a criança dentro do pilão, fazia movimentos como se esta fosse um socador e dizia umas palavras que ninguém entendia. E não é que funcionava?
No local, as casas eram geminadas, como aquelas das colônias das fazendas, e ali moravam as figuras folclóricas Subica, Pé de Leque e Nego Cinda, além do Gonça, um ótimo carpinteiro e marido de Ornélia, que trabalhava conosco. Quando o Vespeiro foi derrubado, muitos foram morar na Vila XV; Gonça e a família se mudaram para a Vila Sampaio e durante muitos anos ele desfilou nas escolas de samba da cidade. Num dos carnavais, ele apareceu em casa e deu uma missão para meu irmão, Mir: pediu que ele lhe fizesse uma coroa bem bonita, porque ele iria sair vestido de Rei, no domingo. Seu desejo foi cumprido e ele e mulher desfilaram naquela noite, com garbo e ginga de majestades carnavalescas.
Na Rua General Isidoro, bem perto de onde é hoje a esquina com Rua Conde do Pinhal, havia um conjunto de casas também habitadas por famílias de negros, entre elas a Carvalho. Eu me lembro de Sabará, que foi jogador do Galo da Comarca e sua irmã Maria das Graças, que até hoje desfila em escola de samba com alegria contagiante. Nos fundos das casas, havia uma grande montanha de areia, o areião. Eu, meus amigos e a meninada da redondeza nos divertíamos ali. Era nossa praia. Numa das casas morava Quim Carvalho, que gostava muito de música e tocava sanfona. Um dia, na década de 90, ele veio a minha casa para trabalhar como pintor. Na hora do cafezinho, eu me sentava ao lado dele, para ouvir histórias do tempo em que ia tocar nas fazendas de Jaú e da época em que a molecada brincava no areião do seu quintal.
Na Orquestra Continental havia vários músicos negros e convivi mais com três: Rubinho, que tocava bateria, Jesus de Oliveira, trombonista, conhecido como Deus, cujos filhos Paulo e Jesus foram meus colegas de docência e Bambuzinho, que tocava pandeiro, hoje é o Mestre Bambu que ensaia várias fanfarras da cidade e nas apresentações comparece impecavelmente vestido com seu terno branco. Ele é um Borges, a família das Sofias e dos Bambus. Eu me lembro que eu era menina e ia com meu pai à casa do Bambuzão, perto da então chamada Ponte dos Suspiros, e lá encontrava com a matriarca Sofia, várias Sofiazinhas e Bambuzinhos, meus amigos até hoje. Entre eles, Rosângela Sofia, minha colega de Industrial e José Luiz, o Bambu, comandante da Banda Marcial do Aristocrata Clube.
Convivi também com os Américo: Edu- o grande jogador do Santos, amigo de infância e juventude do meu marido- Cidinha, Ciça, Etelvina e Terezinha, amigas de longa data;
os Vieira, com a qual convivo há mais de 40 anos; Catarina é minha ajudante e madrinha de meus dois filhos;
os Manoel, de Isabela, Maurício e Silvio; os Souza de Marina, Iara (iara) e Maneco; os Lopes de Mestre Marcial; os Damas; os Ferreira, do militar Bernardo; os Camargo, do conhecidíssimo Dito Camargo; outros Souza, de Purunga, Neil e Elke; os Lucas, de Osvaldo, um dos melhores dançarinos que Jaú já teve e tantos outros que agora me fogem à memória.
Como diz Camila Killiark “se as pessoas soubessem dar valor ao caráter, o quanto elas dão importância à classe social, cor e beleza, talvez o mundo não estivesse à beira do abismo” e não seria necessário um dia da consciência negra, um dia da consciência gay, um dia da consciência indígena, um dia da consciência deficiente, um dia da consciência das mulheres espancadas, um dia da consciência pobre. Igualdade de direitos é acima de tudo um preceito constitucional.